“O sistema de integridade do sector público tem um quadro legal bom, mas o seu ponto crítico é a prática, a sua aplicação efectiva”. Quem assim entende é o académico José Jaime Macuane, no seu mais recente “Relatório de Governação e Integridade em Moçambique 2019: Sector Público”, publicado, há dias, pelo Centro de Integridade Pública (CIP) na coletânea “Governação e Integridade em Moçambique”, na sua terceira edição.

 

Conforme sublinha o pesquisador, o problema não é novo, entretanto, nos últimos cinco anos, o sector público tem enfrentado uma forte crise fiscal, ao mesmo tempo em que a governação democrática está em deterioração, com implicações nas restrições das liberdades e direitos dos cidadãos.

 

“Isso tem implicações no grau de participação na governação, na transparência, na prestação de contas e nos níveis de integridade no sector público”, considera a fonte, numa análise de 11 páginas, baseada, essencialmente, na revisão documental e bibliográfica.

 

Segundo José Jaime Macuane, o país dispõe de elementos normativos para garantir a independência do sector público e sua protecção contra a interferência política, porém, na prática, a independência do sector público “é mais desafiadora”, pois, “os elementos formais da independência não estão garantidos”.

 

Para justificar esta posição, o académico aponta, por exemplo, a nomeação para os cargos de direcção e chefia que ainda são feitos “por confiança [política]”. “Um destes cargos é o de Secretário Permanente de um Ministério, para o qual se abre concurso público e se cria uma comissão de selecção constituída por Ministros e presidida pelo Ministro da Administração Estatal e Função Pública. (…) Na prática, os Ministros, que têm um cargo político, têm interferido na esfera de acção dos Secretários Permanentes e, inclusive, influenciado a sua selecção”, destaca.

 

O mesmo aplica-se à transparência. Neste campo, Macuane considera haver, no sector público, mecanismos que garantam transparência na gestão financeira, dos recursos humanos e de informação, mas, na prática, o acesso à informação pública “ainda é limitado”, apesar de haver “melhoria na disponibilização de informação financeira”.

 

“A disponibilidade de informação financeira melhorou com a expansão do e-SISTAFE que, em 2019, cobria 1.516 (93%) das 1.631 entidades beneficiárias existentes (Unidades Gestora Beneficiária, UGBs), de uma parcela do Orçamento do Estado e 152 (99%) dos 154 distritos existentes no país. Neste âmbito, o Governo tem disponibilizado regular e atempadamente aos órgãos relevantes e ao público, na página de internet do Ministério da Economia e Finanças, o documento do Orçamento do Estado e os respectivos Relatórios de Execução do Orçamento (ROE), assim como a Conta Geral do Estado (CGE)”, diz José Macuane.

 

“O índice de transparência orçamental melhorou de 38 para 41 (de uma escala de 0 a 100, um número maior significando mais transparência) entre 2015 e 2017 e apenas subiu um ponto, para 42, em 2019. O Tribunal Administrativo (TA), entidade responsável pela análise das contas públicas, também disponibiliza ao público o seu Relatório e Parecer à Conta Geral do Estado. Há uma discussão e pressão para a disponibilização dos relatórios de auditoria feitos pelo Tribunal Administrativo e pela Inspecção Geral das Finanças, mas que ainda não foram respondidas positivamente”, acrescenta, sublinhando, no entanto, que: “Em 2019, [o Governo] elaborou e publicou o Relatório de Riscos Fiscais, mas a informação sobre a gestão da dívida pública, que deveria ser trimestral e pública, só está disponível até 2017. Até 2018, não estavam incluídos, no orçamento, os pagamentos atrasados, tanto internos como relacionados ao serviço da dívida externa. A dívida das empresas públicas é outra área onde a disponibilidade da informação pública é limitada”, rematou.

 

No que concerne aos bens dos funcionários públicos, o pesquisador defende que a Lei de Probidade Pública “não está a ser cabalmente cumprida”, pois, de 2018 para 2019, verificou-se uma queda na entrega de declarações de 96.8% para 82.7%. Os magistrados do Ministério Público, por exemplo, nos últimos cinco anos, entre 40% e 16% não declararam os seus bens.

 

No que toca à prestação de contas, a fonte defende que este quesito é condicionado pelo alinhamento partidário, sobretudo no Parlamento, onde o Governo goza de uma “protecção do partido maioritário [Frelimo]”.

 

“Também existe confusão quanto às reais responsabilidades de prestação de contas das empresas participadas pelo Estado. Por exemplo, no contexto das dívidas ocultas, a solicitação dos parlamentares da oposição para ouvirem a empresa EMATUM, que beneficiou das garantias do Estado, foram rejeitadas pela bancada maioritária e a própria empresa alegou que não tinha o dever de prestar contas ao Parlamento. Este posicionamento acabou prevalecendo, apesar de a legislação prever que sempre que haja uso de fundos do Estado há espaço para a fiscalização parlamentar e prestação de contas. A prestação de contas do sector empresarial do Estado é, no geral, fraca”, defende Macuane.

 

Já em relação à integridade, o pesquisador revela haver resultados mistos. Recorrendo às pesquisas de opinião do Afrobarometer, diz, por exemplo, que de 2015 a 2018 reduziu a percentagem de pessoas que reportaram ter pago subornos ou prestado favores em troca de serviços de educação e de saúde por algumas ou muitas vezes, de 16.3% para 11.4% e de 12.4% para 8.2%, respectivamente. Afirma ainda que o Índice de Percepção da Corrupção, da Transparência Internacional, também melhorou ligeiramente, tendo aumentado de 23 para 26 pontos (numa escala de 0 a 100 pontos) entre 2018 e 2019, com o país a subir do 146º para o 126º lugar no ranking mundial de corrupção.

 

Entretanto, “na contramão das tendências positivas, os pareceres da Comissão Central de Ética Pública, por não serem vinculativos, não têm sido levados em conta. Por exemplo, em 2016 o fundo de pensões do Banco Central envolveu-se na compra de um banco por si intervencionado, o Mozabanco. Remetido o assunto à Comissão de Ética Pública, esta declarou a existência de conflito de interesses. Porém, nenhuma medida foi tomada e o negócio continuou com o referido fundo de pensões, que ainda é um dos accionistas do referido banco. Este exemplo denota uma certa ineficácia deste órgão”, sublinha.

 

No que se refere à “Integridade nas Aquisições Públicas”, o académico defende haver “avanços e desafios”. Entre os avanços está a expansão do e-SISTAFE, que tem permitido a extracção de informação estatística sobre as diferentes modalidades de concursos de contratação, incluindo por ajuste directo, o que contribui para o aumento da transparência na área. Já entre os desafios, está o excessivo uso do ajuste directo na contratação pública, o que “denota uma reduzida competitividade e potencialmente menos transparência no procurement público”.

 

Devido a estes aspectos, o académico recomenda a revitalização dos espaços de participação comunitária e da sociedade civil que, na sua óptica, sofreram erosão nos últimos anos. “Esses mecanismos têm potencial para a promoção da integridade, através da monitoria da despesa e dos serviços públicos, demanda da transparência e prestação de contas”.

 

Defende ainda a revitalização de iniciativas de parcerias entre a sociedade civil, o sector privado e o Governo em áreas que promovam a integridade pública, como o procurement, para uma maior monitoria do seu desempenho e definição conjunta de estratégias para a sua melhoria; assim como a melhoria dos mecanismos de promoção de integridade, como a prestação de contas dos funcionários públicos, o controlo do conflito de interesses e da declaração dos bens. (A.M.)

Fonte: Carta de Moçambique

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